Se uma fuinha sobrenatural se instalando no cérebro de um usuário de metrô com a intenção de jogar uma conversa fora é algo que te instiga, você precisa conhecer o talento de Douglas Domingues.
Capixaba radicado em São Paulo, mestre e professor universitário na área da comunicação, Domingues une as características do humor nonsense ao toque de brasilidade que inaugura novas possibilidades para a literatura nacional. A obra “Uma fuinha sobrenatural se instalou em meu cérebro e outros textos igualmente imbecis”, lançada em formato e-book, reúne pequenos contos, poesias e micro-ensaios que, segundo Douglas “guardam como semelhança temas que são estúpidos demais para serem levados a sério”.
Tal estilística pode parecer estranha para a maior parte das pessoas, mas não se engane, há uma enorme cultura em ascensão do universo do “bizarro” somado ao nonsense – sem sentido em tradução literal. Desde o tradicional britânico Monty Python até desenhos da infância noventista como Coragem, o Cão Covarde, elementos que causam estranhamento agradam e atraem centenas de pessoas, especialmente nos espaços geeks.
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Com uma personalidade igualmente irreverente, o autor reforça “o formato de textos curtos o torna uma ótima opção para se ler na intimidade do banheiro”. Não é apenas o conteúdo, mas Douglas também compartilha o nome com uma das maiores referências do segmento, Douglas Adams, envolvido com o projeto de Monty Python e autor do famoso Guia dos Mochileiros da Galáxia. A capa é uma obra à parte de autoria do quadrinista Victor Bello expoente dos quadrinhos undergrounds e responsável por obras como Úlcera Vortex (2017) e O Alpinista (2019).
Sobre o autor
Capixaba radicado em São Paulo, Douglas Domingues é aficionado por quadrinhos baratos, filmes ruins, música esquisita e coisa parecida. Leciona cinema, audiovisual e novas mídias no ensino superior privado.
Entrevista com o autor
Casualmente já estive envolvido em um projeto de humor na internet chamado Laranjas focado em humor nonsense, inspirado nos jornais Casseta Popular e Planeta Diário, que posteriormente se juntaram para fazer o conhecido programa na TV Globo (Casseta & Planeta). Acabamos desistindo do projeto, mas ele ainda está no ar. Por isso, tenho um carinho especial por qualquer projeto relacionado a humor.
Para dar uma ideia melhor sobre o que encontrar nessa lançamento, bati um papo com Douglas para falar mais das referências encontradas no livro.
Explica para nós quais são as suas inspirações dentro do gênero do humor?
Veja bem, meu livro é uma coletânea de textos que eu escrevi sem compromisso nos últimos 20 anos e que ficaram abandonados nas minhas coisas. O que acabou salvando foi meu colecionismo e minha falta de critério. Daí eu separei o joio do trigo. E lancei o joio. Até por que não tinha muito trigo.
Nesse longo período de tempo, minhas inspirações mudaram muito. Mas uma coisa que eu tenho que dizer é que eu não tinha esse propósito de escrever humor. Eu sempre escrevi por escapismo barato mesmo.
Tem gente que lê e dá risada, mas eu não sei se do livro ou se de mim. Um dia eu decidi compilar algumas histórias e publicar. Eu queria escrever um press release pra ajudar na divulgação. Como eu não tinha a menor experiência, então eu pedi ajuda pra uma amiga minha, Camila Acosta, que trabalha com Relações Públicas e é mais que excelente. Ela que sugeriu o termo humor nonsense pra divulgar o livro, e eu acatei. Não por que eu acho que eu escreva humor nonsense de fato, embora eu perceba uma correlação aqui e ali, mas por uma dificuldade de enquadrar meus textos em um gênero. Não por que eu sou um floco de neve, único e ímpar, mas por falta de um repertório decente, talvez.
Há um pouco mais de 10 anos eu descobri, graças à internet, um subgênero obscuro chamado bizarro fiction, que ressoa muitíssimo com o que eu escrevo. E me apaixonei. E muitos dos autores que eu li por lá são inspirações diretas, mas nem todos fazem humor propriamente dito. Mas, como no Brasil o gênero não é muito conhecido, não fazia muito sentido usar o termo na divulgação do livro.
Pra não deixar sua pergunta sem resposta, eu posso citar algumas inspirações do humor sim. Gosto do Groucho Marx, do George Carlin, dos filmes da Troma, das animações e séries do Adult Swim.
Ah, não posso deixar de citar Marcel Duchamp, que não é do humor, mas é uma referência, sem dúvida.
O que você entende por humor nonsense?
Eu não sou nenhum especialista, mas eu entendo que o humor nonsense usa personagens racionais agindo de maneira realista e coerente, mas em situações absurdas.
Deixa eu tentar explicar usando um exemplo: se você bota um militar no exército ou um mímico num circo, você não está no terreno do humor nonsense. Mas se você bota um militar no circo ou um mímico no exército, aí você abre a possibilidade pra essas situações absurdas.
O que é bizarro fiction e da onde surgiu isso?
Bizarro fiction é um subgênero de escrita bizarra tão incomum que bizarro está no nome.
O público do bizarro fiction é um público que gosta de ler coisas estranhas, mas estranhas de um jeito que fica difícil de se categorizar de qualquer outra forma.
Uma editora americana chamada Eraserhead Press foi uma das fundadoras desse subgênero, publicando livros com esse espírito desde sua fundação, em 1999. Uma comunidade se formou, envolvendo muitos escritores e outras editoras, e em 2005 o termo foi sugerido e pegou. Hoje em dia, o gênero se estabeleceu e a comunidade se ampliou.
Pra dar um exemplo que ficou popular há alguns anos, o livro Shatnerquake, de Jeff Burk, conta a história onde todos os personagens que William Shatner já interpretou entram em nossa realidade com uma missão: caçar e destruir o verdadeiro William Shatner. Ou Help! A bear is eating me!, de Mykle Hansen, que é sobre um homem preso debaixo de seu SUV no meio da selva enquanto ele está sendo lentamente comido por um urso. Tipo um Brás Cubas, mas que vai se adefuntando no decorrer do livro.
Aqui no Brasil eu sei somente de um único autor que se categoriza como escritor de bizarro fiction, que é o Pedro Proença. Ele tem um livro lindo, louco e sensível chamado Benjamin, que foi publicado em inglês pela Eraserhead Press e conta a história de um balão amarelo autoconsciente com um acompanhante adolescente obeso que está preso em um shopping que não parece pertencer à realidade. Recomendadíssimo.
Mas tem outros autores incríveis que não são tão explícitos assim. Um que eu adoro e sou viciado é Sam Pink, que escreve sobre situações cotidianas e mundanas, mas de um jeito interessantíssimo. Ele não precisa de usar nenhum elemento bizarro pra ser estranho, a realidade basta. Recomendo dois livros, Rontel e Person.
O que eu gosto do bizarro fiction é que eu me sinto em casa, mesmo não participando ativamente da comunidade. Tem uma frase que eu gosto que diz “art should comfort the disturbed and disturb the comfortable”, e isso resume minha relação com o gênero.
Da onde você tirou a ideia de escrever sobre um cachorro que odeia pão?
Esse eu escrevi na época que eu fiz minha graduação.
Eu tive contato, de alguma forma que eu não lembro, com os experimentos do fisiologista russo Ivan Pavlov sobre condicionamento de cachorros. E eu já conhecia a proposição de Erwin Schrödinger sobre mecânica quântica que ficou conhecida como gato de Schrödinger.
Daí que eu me dei conta que eram dois assuntos científicos com animais domésticos como protagonistas, justamente cães e gatos. E eu tentei imaginar como eu poderia fazer os dois se encontrarem e fui costurando a situação até sair o texto.
Alguns anos depois eu descobri que Einstein, em sua última palestra, fez uma metáfora usando um camundongo como exemplo e que algumas pessoas se referem a isso como o camundongo de Einstein. Daria um ótimo episódio bizarro de Tom e Jerry, com participação do bulldog Spike.
Só pra constar, o Titoró, meu cachorro, adora pão e saliva só de ouvir a palavra.
Como que você decidiu tornar uma fuinha sobrenatural o protagonista de um de seus contos?
Eu gosto da sonoridade da palavra fuinha. E eu comecei a escrever essa história indo pro trabalho, andando no metrô, digitando no celular. Eu não fazia ideia do que que ia sair, mas queria escrever.
E eis que eu me pego no submundo da estação de metrô Santa Cruz, aqui em São Paulo. E uma hora eu não sabia mais pra onde ir. Nem na história nem no metrô, já que eu só tava olhando pro celular. Eu parei pra ver pra onde eu ia (no metrô). E eu acabei vendo alguém comendo churrasquinho. E como não existe comércio dentro do metrô, eu fiquei imaginando como diabos naquela aglomeração super ultra densa a pessoa chegou com um churrasquinho intacto naquele pavimento de sub-sub-sub-solo. As coisas se confundiram na minha cabeça e daí eu acabei encontrando o caminho pra história e pra baldeação também, por sorte. Terminei de escrever antes de chegar no trabalho. Quando saí do metrô, acabei comendo um churrasquinho também.
Eu também faço amizades com batatas. Isso é normal?
Normal eu não sei, mas um traço de personalidade desejável, com certeza.
Embora nenhuma das histórias no livro sejam autobiográficas, ocasionalmente eu também faço amizade com alguma batata.
Na minha época de estudante universitário, eu fui gravar um curta-metragem pra uma disciplina de vídeo, e a locação era o apartamento de uma amiga. Enquanto todo mundo estava concentrado, eu peguei uma batata na cozinha e escondi no cenário da primeira locação, na sala. Sem motivo. Achei que ninguém tava vendo.
Um dos colegas da equipe percebeu e deixou baixo. Daí, quando a gente terminou de gravar a primeira cena e foi montar o segundo cenário, ele chegou perto de mim e me desafiou a esconder a batata em todas as cenas. E eu consegui.
No final da gravação, eu devolvi a batata pra cozinha. E meu amigo chega pra dona do apartamento e pergunta se ele podia levar aquela batata pra casa. Ela ficou sem entender nada, mas aceitou sem perguntar o motivo. O curta a gente gravou em 2006. Eu nunca soube o destino da batata.
Hoje em dia eu sou professor de audiovisual e um dia, no final de 2019, eu contei essa história em aula. Quando a aula terminou, eu comecei a imaginar o que teria acontecido com a batata. Que eles ficaram amigos, mas que em algum momento ou a batata apodrecia ou ele comia. E veio a história.
Recado Final
Eu acho que faltam no mundo livros formatados pra se ler no banheiro, sabe? De textos curtos, que leva em consideração tanto aspectos artísticos quanto intestinais. E eu fiz uma tentativa de lançar um livro nesse sentido, pra você ler no momento íntimo de excre-meditação.
Se não pelo conteúdo, o livro vale a pena pela capa, que é do talentosíssimo Victor Bello, o maior expoente dos quadrinhos bizarros contemporâneos do universo! Ele é o responsável por Úlcera Vortex, Sinuca Paranoide e O alpinista, esse último uma obra-prima essencial em qualquer coleção de quadrinhos.
Já estou escrevendo um segundo livro, que tem o título provisório Reencarnei como uma jujuba e outros textos igualmente degradantes. O título vem do meu primeiro conto auto-biográfico e conta uma a história de uma bad trip de abstinência de açúcar.
Quem quiser entrar em contato, é só escrever para [email protected].
Muitíssimo obrigado pela oportunidade de falar um bocadinho!
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