Poucas histórias são tão bizarras e cômicas quanto O Nariz, de Nikolai Gogol. Publicado pela primeira vez em 1836, esse conto curto é um prato cheio para quem curte literatura fantástica, crítica social e, claro, um bom absurdo russo. E quando digo absurdo, é no melhor dos sentidos: Gogol nos convida a rir do ridículo, mas também a encarar o mundo com um olhar desconfiado.
A premissa já arranca um sorriso de quem ouve ou lê pela primeira vez: um homem acorda e descobre que perdeu o nariz. Não, ele não está machucado. O nariz sumiu. Foi embora. E pior: está andando por aí, vestido de funcionário público de alto escalão e se recusando a reconhecer o próprio dono.
Essa é uma daquelas histórias que podem ser lidas em menos de duas horas — inclusive ouvi a versão da Antofágica na Audible, narrada por Spencer Toth, com pouco menos de 2 horas de duração. Mas apesar da leveza e do humor, O Nariz é uma obra carregada de críticas à sociedade da época — críticas essas que, pra quem não conhece a história da Rússia imperial, podem passar batido.
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Um nariz sem rosto e um rosto sem valor
O protagonista da história é o major Kovaliov, um assessor colegial da burocracia russa — o tipo de funcionário público vaidoso, arrogante, obcecado por status. A perda do nariz, em si, já seria trágica. Mas o mais hilário (e, ao mesmo tempo, desconcertante) é que o major não se preocupa com sua saúde, com o mistério da fuga nasal ou com o absurdo da situação. Ele está desesperado porque, sem nariz, não poderá mais flertar com mulheres ou subir na hierarquia estatal.
É essa inversão de prioridades que torna a história genial. O nariz, símbolo de identidade e aparência, ganha vida própria — literalmente — e parece estar acima do próprio dono na escala social. Quando Kovaliov encontra o nariz na catedral de Kazan, percebe que ele já alcançou uma patente superior à sua. É como se Gogol dissesse: “Na Rússia czarista, até um nariz pode ter mais prestígio que você.”
Quem são os personagens principais?
Apesar de curto, O Nariz tem uma galeria de personagens bem marcantes. O protagonista é Major Kovaliov, um assessor colegial que representa o típico burocrata vaidoso da Rússia czarista. Ele é obcecado com seu título, com a aparência e com o prestígio social. Seu desespero ao perder o nariz não é físico — é social. Sem ele, sente que está invisível, impotente e fora do jogo do status.
Outro personagem de destaque é o barbeiro Ivan Iakovlevitch, que encontra o nariz dentro de um pão logo no início da história. Ele representa o povo comum, envolvido involuntariamente em situações absurdas que não compreende. Seu pavor ao tentar se livrar do nariz mostra o medo que a população tinha de se envolver com o aparato estatal.
E, claro, temos o nariz — que, em sua forma antropomórfica e independente, se torna uma figura simbólica de ascensão social e autonomia do ego. Ele anda de uniforme, frequenta a catedral, e age como se fosse um funcionário público de alta patente, ignorando completamente o major.
Esses três personagens — o major, o barbeiro e o próprio nariz — formam o núcleo cômico e simbólico do conto. A interação entre eles revela o quanto a identidade, o poder e o valor pessoal estavam (e talvez ainda estejam) absurdamente atrelados à aparência e ao status.
São Petersburgo como cenário
Um detalhe importante que percebi só após ler os textos complementares da edição da Antofágica (e que recomendo muito): a escolha de São Petersburgo como cenário não é à toa. A cidade era símbolo da modernização forçada e da ocidentalização imposta por Pedro, o Grande. Mas também era um lugar frio, impessoal e, para muitos russos da época, um espaço onde o funcionalismo esmagava a individualidade.
Em O Nariz, a cidade não apenas abriga o absurdo — ela o reforça. Ninguém parece realmente chocado ao ver um nariz andando de uniforme. Não há gritos ou revolta pública. Tudo é burocraticamente aceito. Um policial apenas “anota o caso” e um cirurgião tenta, sem sucesso, colar o nariz de volta com cola. A lógica da cidade já é absurda por natureza, então o realismo fantástico da narrativa se encaixa como uma luva.
Um conto fantástico, grotesco e profético
Gogol foi um dos precursores do realismo fantástico, e muitos estudiosos veem O Nariz como um exemplo embrionário do que Kafka, Borges e até o movimento surrealista fariam décadas depois. A sátira grotesca — um elemento tão característico da literatura russa do século XIX — serve aqui não só para arrancar risos, mas também para escancarar o vazio das estruturas sociais baseadas em aparência e hierarquia.
O que mais me fascina é como O Nariz funciona em tantas camadas. Para um leitor desavisado, é só uma comédia nonsense. Para quem conhece um pouco mais do contexto da Rússia czarista, vira uma crítica mordaz ao sistema de castas civis implantado por Pedro, o Grande. E para o leitor moderno, que vive num mundo dominado por selfies, filtros e redes sociais, a história parece ganhar um novo significado: o que acontece quando nossa identidade depende da imagem que projetamos?
O Nariz nos dias de hoje
Talvez essa seja a grande sacada para quem quer revisitar O Nariz hoje: ele fala sobre a perda da identidade em meio à pressão social por status e aparência. Troque “major Kovaliov” por um influenciador que perdeu sua conta no Instagram. Ou por um executivo que teve sua reputação arranhada por um escândalo online. O pânico é o mesmo: “Como vou ser visto agora?”, “Como vou me relacionar sem meu rosto social?”, “Como posso continuar subindo na vida se perdi o que me dava prestígio?”
O nariz é, em última instância, um símbolo do ego. E Gogol mostra que o ego, quando hipertrofiado, vira uma entidade autônoma — que te abandona, te humilha, te supera.
Humor como disfarce da crítica
Outro ponto que me chamou a atenção foi o uso do humor como uma espécie de escudo. Gogol nos faz rir o tempo todo, mas nunca gratuitamente. A risada vem com uma pontada de desconforto, como se dissesse: “Você também vive nesse tipo de sociedade, só que ainda não percebeu.”
O barbeiro que encontra o nariz no pão, a tentativa de publicar anúncios para recuperar o nariz perdido, a burocracia falha, o médico inepto — tudo soa ridículo, mas absolutamente familiar. Afinal, quem nunca ficou preso em sistemas absurdos, tentando resolver problemas simples com soluções cada vez mais ilógicas?
Considerações finais: um nariz que não envelhece
Dou nota 4 para O Nariz. É uma leitura rápida, engraçada e cheia de camadas — mas exige alguma bagagem histórica pra ser totalmente apreciada. Confesso que só entendi muita coisa depois de recorrer aos materiais da Antofágica e à apresentação da Tamy Ghannam. Isso não tira o brilho da obra, mas talvez explique por que muita gente lê Gogol e sente que está perdendo algo.
Ainda assim, é impossível não recomendar essa leitura. Em especial para quem gosta de contos que desafiam a lógica, que usam o absurdo como espelho social e que se mantêm atuais mesmo quase dois séculos depois de publicados. O Nariz é uma pequena aula de literatura fantástica, um manifesto contra o vazio da vaidade e uma provocação divertida que continua fazendo sentido — e rindo de nós — até hoje.
Dados técnicos da obra
- Título: O Nariz
- Autor: Nikolai Gogol
- Tradução e adaptação: Lucas Simone
- Narrador (versão Audible): Spencer Toth
- Editora: Antofágica
- Duração do audiolivro: 1h54min
- Lançamento (Audible): 9 de abril de 2025