Coisa de Rico – Michel Alcoforado e a antropologia do luxo (Resenha)
Há livros que descrevem um tempo; outros o decifram. Coisa de Rico, do antropólogo Michel Alcoforado, faz as duas coisas. Publicado em 2025, o livro mergulha no comportamento das elites brasileiras e, mais do que analisar o consumo, investiga o imaginário da distinção, esse esforço incessante para parecer — e ser reconhecido — como alguém de sucesso. Nesse texto, você irá conferir uma resenha de Coisa de Rico e entender melhor como vivem os endinheirados brasileiros (a obra já figura na lista de mais vendidos do ano).
Um retrato dos anos 2010: quando Miami era o shopping da classe média alta
Alcoforado abre o livro situando o leitor em um momento emblemático: o início dos anos 2010, quando o Real estava valorizado frente ao dólar e o Brasil vivia o auge de sua euforia econômica. A inflação controlada, o crédito fácil e o otimismo político criaram uma geração que viajou para fora do país pela primeira vez — e voltou com as malas cheias.
Era o tempo dos voos lotados para Miami, do frenesi nos outlets, das fotos com sacolas da Ralph Lauren e da Michael Kors no Instagram. A classe média alta brasileira descobria que “comprar barato nos Estados Unidos” era quase uma forma de vitória pessoal sobre a desigualdade local.
Como o autor ironiza logo nas primeiras páginas:
“Nenhum economista, desses de barba rala, calça bege e camisa azul, desatinado a usar termos técnicos, seria capaz de descrever a euforia vivida pela sociedade brasileira daquele tempo. Nenhum historiador, com bonezinho de movimento social, enfurnado nos arquivos da Biblioteca Nacional, conseguiria explicar o desespero dos brasileiros por quinquilharias de luxo nos outlets americanos.” (p. 8)
Mais do que um dado econômico, esse fenômeno representava uma ânsia simbólica por pertencimento. No fundo, como o autor sugere, não se tratava de enriquecer, mas de performar a riqueza — o verdadeiro objeto de desejo do brasileiro.
A “operação da diferença” e o fetiche das coisas
O conceito mais instigante do livro é o que Alcoforado chama de “operação da diferença”: o modo como os ricos (ou aspirantes a ricos) constroem e exibem distinção em uma sociedade onde quase todos se definem como “classe média”.
No Brasil, ele observa, ociosidade rima mais com exclusão do que com distinção (p. 62). Ser ocupado — mesmo quando não há muito o que fazer — é um sinal de status. Daí o surgimento dos “ocupados desocupados” (p. 63), artistas, curadores, marchands e escritores de sobrenomes poderosos, que vivem da herança mas se mantêm sempre “em movimento”, como se o tédio fosse uma ameaça à legitimidade de sua posição social.
Ao contrário dos Estados Unidos ou da França, onde a riqueza se ancora em patrimônio e herança rastreável, a elite brasileira é fluida, ansiosa e aberta a novos entrantes. Como resume um dos trechos mais emblemáticos:
“Um cartão de crédito com limite generoso para bancar as parcelas de uma coisa de rico já é um passo na garantia de reconhecimento.” (p. 134)
O consumo, portanto, é mais do que uma demonstração de poder: é um mecanismo de classificação social. Comprar é uma forma de ser — e não comprar é quase um ato de exclusão.
O medo de cair: a angústia invisível da elite brasileira
Em outro ponto brilhante que quero ressaltar nessa resenha de Coisa de Rico é quando Alcoforado escreve:
“Qualquer rico no Brasil tem horror à possibilidade de ficar pobre.” (p. 197)
Esse pavor da queda é talvez o traço mais marcante das elites nacionais. O país que naturalizou desigualdades profundas também cultiva um medo constante de “perder tudo”. É um sentimento que atravessa gerações e explica a obsessão por manter o padrão de vida mesmo sem dinheiro — “empobrecem, mas se mantêm agarrados à materialidade de um patrimônio que não podem bancar” (p. 198).
O autor observa que, no Brasil, “ser rico não é uma condição, é uma relação” (p. 205): ninguém é, mas está rico em relação a outro. É essa fluidez que alimenta a insegurança, o gasto desmedido e o fetiche das aparências.
Quiet luxury e a busca por um novo código de prestígio
Nos capítulos mais recentes, Alcoforado explora a estética do “quiet luxury” (p. 43) — o luxo que sussurra, não grita. Camisas discretas e jantares em restaurantes de nomes impronunciáveis substituem a ostentação explícita dos anos 2000. O rico quer parecer sofisticado, não espalhafatoso.
Mas, como o autor mostra, a mudança é apenas superficial. A estrutura simbólica é a mesma: a elite segue disputando o olhar alheio. “Os ricos precisam gastar energia justificando, com argumentos, as razões dos seus desejos” (p. 207), escreve ele, numa frase que poderia servir de epígrafe para toda a obra.
Aquilo que é fundamental à manutenção do próprio padrão é básico. O que foge, é supérfluo.
No fecho do livro, Alcoforado propõe uma reflexão contundente sobre o papel do consumo como sustentação da própria identidade social:
“Sendo assim, vemos em qualquer hábito de consumo, não importa o custo, um item de primeira necessidade, se nos ajuda a performar um padrão e nos posiciona dentro do jogo social. Dado que, sem eles, não temos lugar social. Não importa se estamos nos referindo a um prato feito em uma padaria de rua ou ao menu degustação de um restaurante estrelado: aquilo que é fundamental à manutenção da performance de um determinado padrão é básico. O que foge, é supérfluo.” (p. 213)
É a síntese perfeita do que o autor chama de antropologia da performance de status — uma sociedade em que o consumo é tão essencial à identidade quanto o próprio trabalho.
No fim, tanto um quanto o outro estão de olho nas coisas de rico.
A conclusão é provocativa e, ao mesmo tempo, cômica:
“Um rico diz que o outro é rico porque imagina que esse tem mais dinheiro do que aquele. O acusado nega, mas fica feliz por ser visto como tal. No fim, tanto um quanto o outro estão de olho nas coisas de rico.” (p. 213)
É o ponto de chegada de uma tese que enxerga na vida das elites brasileiras não apenas uma estrutura econômica, mas um teatro social, onde o aplauso vem do olhar do outro.
Uma antropologia elegante e provocadora
Michel Alcoforado combina o olhar etnográfico com uma prosa espirituosa e acessível. Seu tom irônico, por vezes cômico, lembra o de um cronista que se infiltra em jantares de alta sociedade apenas para observar as manias e os rituais de um grupo que fala de dinheiro sem nunca mencionar valores.
O livro se apoia em pesquisa de campo e entrevistas, mas nunca se perde em jargões. É uma obra que traduz a sociologia da distinção de Pierre Bourdieu e o conceito de consumo conspícuo de Thorstein Veblen para o contexto brasileiro — sem pedantismo acadêmico, mas com profundidade e ironia.
Conclusão: o espelho social das “coisas de rico”
Terminamos nossa resenha de Coisa de Rico. Esse livro é um retrato fiel da elite brasileira contemporânea, que vive aprisionada entre o desejo de ser reconhecida e o medo de desaparecer. O livro desmonta o mito da meritocracia tropical e mostra como a lógica do consumo se tornou o eixo da identidade nacional.
Ao fim, o leitor percebe que o verdadeiro objeto de estudo de Alcoforado não é o rico, mas o brasileiro que acredita que pode se tornar um — desde que compre a coisa certa, use a marca certa, fale do jeito certo. E é aí que o autor nos devolve o espelho: a diferença que tanto queremos ver é, no fundo, o reflexo do mesmo vazio.
Ficha técnica da edição
- Título: Coisa de Rico: A vida dos endinheirados brasileiros
- Autor: Michel Alcoforado
- Editora: Todavia
- Data da publicação: 8 de agosto de 2025
- Idioma: Português
- Número de páginas: 240 páginas
Nota editorial: este artigo foi originalmente publicado em 23 de outubro de 2025 e atualizado pela última vez em 23 de outubro de 2025 para refletir mudanças recentes e novas informações verificadas.
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